Em acórdão editado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) [1], entendeu-se por afastar a obrigatoriedade do cumprimento da cláusula arbitral pela parte devedora, argumentando-se que a massa falida não tinha condições de arcar com os custos da arbitragem, ante a sua fragilidade econômica.
Segundo a relatora do acórdão, à época da contratação da cláusula compromissória a empresa devedora possuía condições de se submeter ao procedimento arbitral, mas, ante o seu atual estado falimentar, o cenário se alterou e a incapacidade financeira não mais permitiria que cumprisse o quanto se obrigou.
Acrescentou que a massa falida não poderia ser obrigada a se submeter ao procedimento arbitral e, de outro lado, a ela seria possível discutir a controvérsia no juízo estatal, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Entendeu que, diversamente das questões submetidas ao juízo arbitral, nas demandas propostas perante o Poder Judiciário é possível a concessão da gratuidade, permitindo-se que a parte litigue sem que a ela se imponham os ônus do pagamento de custas processuais.
O acórdão afastou a competência do juízo arbitral e decidiu que a controvérsia deveria ser submetida ao juízo estatal do processo falimentar, perante o qual se realizaria a instrução processual.
O entendimento em questão comporta críticas.
Primeiro, porque a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece que a hipossuficiência “não é causa suficiente para caracterização das hipóteses de exceção à cláusula kompetenz-kompetenz“, sendo vedado o “afastamento pelo juízo estatal dos efeitos da cláusula compromissória de arbitragem em respeito ao princípio kompetenz-kompetenz” [2].
O acórdão do TJ-RJ se dissocia da jurisprudência do STJ, reafirmada no precedente ora invocado, de que controvérsia “acerca da existência, validade e eficácia da cláusula compromissória deve ser resolvida, com primazia, pelo juízo arbitral”, impossibilitando-se “essa discussão perante a jurisdição estatal”.
Essa discussão não é nova no próprio TJ-RJ. Em julgamento realizado no ano de 2014 decidiu-se, de forma diametralmente diversa da exarada pelo julgado ora examinado, aplicando-se o princípio kompetenz-kompetenz, “por força do qual incumbe ao árbitro ou ao tribunal arbitral examinar sua própria competência e as questões atinentes a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem” [3].
O próprio acórdão em exame reconhece que o administrador judicial da massa falida não pode recusar o cumprimento da cláusula arbitral, ante as regras da Lei n° 11.101/2005. E essa vedação ao descumprimento da cláusula compromissória também se aplica ao Poder Judiciário.
O acórdão argumenta que a devedora estava sujeita à arbitragem, mas, ante às suas dificuldades financeiras posteriores, a cláusula arbitral deveria ser mitigada, considerando os altos custos da arbitragem e os prejuízos que daí poderiam advir à massa falida e aos seus credores.
A solução encontrada pelo TJ-RJ foi a de determinar a competência do juízo estatal falimentar para dirimir a controvérsia, com esteio no princípio da inafastabilidade da jurisdição, sustentando que a massa falida não poderia ficar à mercê da vontade imposta pelo seu credor e se submeter à arbitragem.
O equívoco é perceptível, na medida em que não se trata da imposição da vontade de uma parte sobre a outra, mas de livre escolha dos contratantes que elegeram o juízo arbitral para submeter os seus conflitos, renunciando à intervenção da justiça estatal.
Não há violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, até porque o árbitro exerce função jurisdicional, sendo considerado juiz de fato e de direito nos termos do artigo 18 da Lei n° 9.307/1996.
Além disso, a jurisprudência do STJ se posiciona no sentido de que “o estado falimentar não presume a hipossuficiência financeira para fins de concessão da gratuidade da justiça” [4]. Portanto, a mitigação da cláusula arbitral não significa a preservação do princípio da inafastabilidade da jurisdição, até porque a eventual concessão do benefício da gratuidade à massa falida não é automática e pode ser negada pelo juiz estatal.
O entendimento do TJ-RJ é que afronta princípios de direito como a obrigatoriedade dos contratos, a autonomia da cláusula compromissória, a autonomia da vontade, a kompetenz-kompetenz e a segurança jurídica.
Consideradas as disposições legais e o posicionamento jurisprudencial, a decisão do TJ-RJ gera insegurança jurídica, na medida em que altera as regras contratuais que foram livremente ajustadas entre as partes, a partir da autonomia das suas vontades, impondo novo e surpreendente cenário.
Se as partes se obrigaram ao cumprimento da cláusula compromissória e escolheram renunciar à Justiça estatal, pois entenderam conveniente submeter as questões decorrentes do contrato ao procedimento arbitral, não é legalmente autorizado que o Poder Judiciário intervenha e imponha ao credor a obrigatoriedade de renunciar ao juízo arbitral por ele e pelo devedor eleito legal e regularmente, para que a controvérsia seja solucionada pelo magistrado oficiante no processo falimentar.
Essa indevida alteração na jurisdição gera outros efeitos que não podem passar despercebidos. Ao eleger a via arbitral para a solução da controvérsia, devedor e credor renunciaram à possibilidade de se manejar recursos contra a decisão que vier a ser proferida pelo árbitro.
Os contratantes — especialmente o credor — tinham a legítima expectativa, quando da formação do contrato, que, na hipótese de controvérsia, a sua solução viesse a ser proferida pelo árbitro e a execução da sentença arbitral seria imediata e imune ao segundo grau de jurisdição.
As partes optam pela arbitragem como forma de resolução de controvérsias, na medida em que veem vantagem sobre o julgamento estatal, notadamente em razão da especialidade e da escolha dos árbitros, da flexibilidade do procedimento, do sigilo e da celeridade do processo.
Não se está defendendo aqui que a massa falida seja impedida de litigar, por uma suposta ausência de recursos. O que se propõe é chamar a atenção para o enfrentamento do tema de forma não tão simplista como a adotada pelo TJ-RJ.
Opções podem ser analisadas ante a eventual falta de recursos do contratante que se sujeitou à cláusula compromissória, como o financiamento da arbitragem por terceiros. Ainda que o tema possa gerar polêmicas e discussões, há fundos no Brasil (third party funding, ouTPF) que financiam litigantes em procedimentos arbitrais, tanto que as câmaras arbitrais tem se preocupado em estabelecer regras para tais hipóteses [5].
O tema em exame merece detida reflexão, pois a mitigação da cláusula compromissória determinada pelo acórdão do TJ-RJ é que afasta do contratante, ilegal e indevidamente, o acesso à jurisdição por ele legitimamente eleita.
O entendimento ora criticado, se for estendido a toda sorte de litigante que alegar enfrentar dificuldades financeiras, gerará efeitos nocivos que poderão implicar na extirpação dos efeitos das cláusulas compromissórias e no comprometimento das arbitragens.
O que se vislumbra é o futuro enfrentamento da questão pelas cortes superiores, pois a denominada mitigação da cláusula arbitral não implica em simples abrandamento dos seus efeitos, mas em sua verdadeira cassação, não podendo prevalecer sob pena de se instaurar cenário de insegurança jurídica.
[4] AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.069.805 – SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, j. 05.03.20.
[5] Ver: Resolução 18/2016 da CAM-CCBC; Regulamento da ICC (artigo 11, item 7); Resolução Administrativa 14/2020 da CAMARB.
Por José Roberto Camasmie Assad é advogado, tem especialização em Direito Processual Civil pela PUC-SP, LLM em Direito Empresarial pelo IBMEC-SP integrando o Núcleo de Pesquisa em Arbitragem da mesma instituição e é coordenador de contencioso cível do escritório Luchesi Advogados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2021, 9h13
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