O ano de 2019 foi, definitivamente, marcado por significativas mudanças para a comunidade arbitral. Elas podem ser divididas em três temas principais: a consolidação das arbitragens públicas, a estreia das arbitragens de classe e o aumento da presença de financiamento externo nas arbitragens.
A primeira situação não é tão nova assim. Desde a mudança operada na Lei de Arbitragem em 2015, é facultado à Administração Pública direta e indireta se valer da arbitragem para dirimir conflitos que envolvam direitos patrimoniais disponíveis no âmbito dos seus contratos.
Posteriormente, outro passo importante foi dado na mesma direção em 2017, quando a Lei nº 13.448 passou a regular, no art. 31, o uso da arbitragem em contratos de infraestrutura.
Ao longo deste ano, novas normas foram editadas para regulamentar o tema nas esferas federal e estadual, assim como as agências reguladoras passaram a disciplinar a utilização da arbitragem nos respectivos contratos, inclusive abrindo a possibilidade de remeter disputas em curso no Judiciário à arbitragem por meio da celebração de compromisso arbitral.
No executivo federal, foi promulgado o Decreto n.º 10.025, de 20 de setembro de 2019, que revogou o Decreto n.º 8.465/2015 e passou a admitir a arbitragem para um espectro mais amplo de setores de infraestrutura, estendendo-se, além do portuário, aos transportes rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário.
Regulamentando o §5º do art. 31 da Lei n.º 13.448/17, o Decreto 10.025 estabeleceu os critérios de credenciamento das câmaras arbitrais que administrarão os procedimentos arbitrais envolvendo os entes federais, as quais devem ser previamente aprovadas pela Advocacia Geral da União (AGU). Não é demais lembrar o entendimento consolidado de que a contratação das câmaras se enquadra nas hipóteses de dispensa de licitação previstas na Lei n.º 8.666/93, porquanto há caráter de notória especialização.
No mais, o Decreto n.º 10.025 confirmou vários dispositivos da Lei n.º 13.448/17, seja quanto à arbitrabilidade objetiva dos litígios, de forma idêntica ao §4º do referido art. 31 da Lei n.º 13.448/17, seja, ainda, quanto à publicidade dos procedimentos, princípio tão caro a ponto de ter sido incluído na atualização da Lei de Arbitragem.
O decreto inova ao permitir que a Administração avalie os prós e contras de optar pela arbitragem, privilegiando-a, por exemplo, sempre que a divergência se relacionar a “aspectos eminentemente técnicos”; ou seja, reconhece o alto grau de especialização das decisões arbitrais, traduzindo em norma uma pré-disposição que, décadas atrás, era inimaginável do ponto de vista estatal.
As autarquias federais também têm se dedicado a estabelecer regras sobre o tema. É o caso, por exemplo, da Agência Nacional de Transportes Terrestres, por meio da Resolução 5.845, de 14 de maio de 2019, que dispõe sobre o processo de solução de controvérsias na Agência – seja por meio de mediação ou de arbitragem.
A resolução elenca as questões consideradas inarbitráveis, com destaque para o pedido de rescisão do contrato por parte da concessionária, que é controvertido e precisa ser estudado mais a fundo. Isso porque a própria resolução estabelece que são arbitráveis as discussões de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, penalidades contratuais e inadimplemento de obrigações por qualquer das partes, de modo que nos soa contraditório vedar à concessionária que pleiteie, em arbitragem, a consequência jurídica do inadimplemento contratual pelo Poder Concedente, ou mesmo o desequilíbrio da avença.
Na seara estadual, o Decreto nº 64.356/2019 do Executivo paulista, editado em 31 de julho de 2019, dispõe, de maneira abrangente, sobre a arbitragem no âmbito da administração pública direta e autárquica estadual.
O art. 7º do Decreto introduz a necessidade de cadastramento prévio de câmaras arbitrais, observadas as seguintes exigências: ter mais de cinco anos de atuação no mercado de arbitragem; disponibilizar espaço para audiências sem custos adicionais; e ter reconhecida idoneidade, competência e experiência na administração de arbitragens.
Em 16 de dezembro último, a PGE editou a Resolução n.º 45 para disciplinar os requisitos para cadastramento das câmaras, indicando, quanto à idoneidade, que ela deve ter administrado ao menos 15 arbitragens no ano calendário anterior, das quais pelo menos um envolvendo a Administração Pública, e um cujo valor supere R$ 50 milhões.
Ademais, tônica comum a todos os procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública é a obrigatoriedade de que as custas e despesas sejam adiantadas pelo particular, sendo ressarcidos, no todo ou em parte, a depender da alocação feita pelo tribunal arbitral, ao término do procedimento.
Apesar das inegáveis vantagens da utilização do instituto, a peculiaridade do recolhimento das custas pelo contratado, conquanto ainda não tenha sido muito discutida na prática, pode ter o condão de impor ônus excessivos ao particular, que inclusive deverá ter que aguardar eventual reembolso por período relativamente longo, na medida em que ele é feito por meio de precatórios ou por requisição de pequeno valor (RPV).
De todo modo, essa situação abre ainda mais espaço para a figura do financiamento de arbitragens por terceiros, fenômeno cada vez mais recorrente na prática arbitral, sobretudo no presente ano. Os advogados que militam na área têm, cada vez mais, se deparado com a presença de empresas como a Leste e o Harbour, dois dos principais players neste segmento, que facilitam – ou por vezes viabilizam – a propositura de demandas arbitrais e/ou incrementam as chances de sucesso de uma tese de defesa ao prover recursos à parte com menor condição financeira.
Além dessa vertente, o financiamento propicia, também, a possibilidade de a parte usar o mecanismo como instrumento de planejamento financeiro, evitando desembolso geralmente vultoso em contrapartida ao recebimento de uma parte do êxito na demanda. O financiador, portanto, partilha o risco com o financiado, que não tem quaisquer ônus a não ser concordar em ceder parcela daquilo que receberia em caso de sucesso absoluto na demanda.
Outro destaque ao longo de 2019 foi a edição da Lei nº 13.867, que permitiu ao particular optar pela mediação ou arbitragem para resolver disputas sobre valores indenizatórios em desapropriações. Conquanto sejam excluídos outros aspectos das disputas dessa natureza como, por exemplo, questões relacionadas à declaração de reconhecimento da utilidade pública da desapropriação ou à definição da área desapropriada, a iniciativa legislativa nos parece extremamente salutar para desafogar o Judiciário.
Por fim, o desafio das arbitragens de classe. Como cediço, a “cultura da litigiosidade” é mitigada no séc. XXI, que é o século das parcerias, da arbitragem e da mediação, visando atender, adequadamente, as grandes causas e até os litígios médios.
Ao lado da arbitragem expedita, outra novidade que democratiza o uso da arbitragem em pequenas causas, com rito especial, para os litígios de valores menores, a arbitragem coletiva e de classe reúne interessados que estão nas mesmas condições e têm os mesmos pleitos, reduzindo-se assim os custos e beneficiando todos os demandantes que aderirem a ela.
Com efeito, os casos (i) da associação de minoritários da Petrobras, que litiga contra a empresa pelos prejuízos da Lava Jato, e (ii) dos minoritários da Vale que buscam reparação pelos prejuízos decorrentes do episódio de Brumadinho, são exemplos concretos de que as arbitragens coletivas precisam ser discutidas e, possivelmente, regulamentadas.
Em suma, 2019 foi um ano muito profícuo para os entusiastas e atuantes em arbitragem, ao longo do qual se viu o fortalecimento do instituto no Legislativo, e continua contando com o apoio do Judiciário ao impedir tentativas frívolas de escapar de cláusulas compromissórias ou de anular as sentenças arbitrais. Há, ainda, temas tão ou mais espinhosos – como a arbitragem tributária – cuja discussão decerto avançará em 2020.
Por Riccardo Giuliano Figueira Torre, sócio de Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados. Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Processual pela USP. LL.M. em International Business Regulation, Litigation and Arbitration pela New York University (NYU), Arthur T. Vanderbilt Scholar
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 6 de janeiro de 2020, 7h00
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